sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

XIQUITA, A BACANA DA MARTINICA | Zuca Sardan & Floriano Martins

ZUCA  SARDAN  &  FLORIANO  MARTINS

APRESENTAM

XIQUITA, A BACANA DA MARTINICA


ZUCA - O Circo vai ser um luxo só… Já telefonei pra Xiquita Piranda, pra que venha ouriçar nosso lançamento no Cassino da Urca. Xiquita me disse que virá de sandalhones de cortiça, chapelão de cesta de babananas e tanguinha argentée, com plumas de avestruz.

FLORIANO - Em meio a tanta quinquilharia que reuni para compor o cenário, veio a sombra de uma bailarina, quem sabe consigo lhe improvisar um penteado de babananas.

XIQUITA - Eu sou uma bailarina com tanguita aureolada, de plumas d'avestruz, e um tabuleiro na cabeça, repleto de cachos de babanana nanica.

CORO - Xiquita, a rainha da Martinica! Amante de Américo Vesputinho!

AMÉRICO - Ai que me muero!!!

ZUCA - Xiquita quase matou o Américo que não chegou bem a morrer, mas ficou vespurado e bradava:

AMÉRICO - Ai, Xiquita que me muero / Ay, que me muero Xiquita / despacio, bien despacito…

FLORIANO - No sobradão do Cassino, onde as meninas se enfeitavam, entre todas as atrações, Xiquita foi a mais notável, tão pequena e esfuziante, tomada por paetagens, e suas babananas levemente esverdeadas, em pleno escarcéu do sobrado, foi Xiquita quem ensinou a tirar o macaco do pau.

AMÉRICO - Ai que me muero!!!

XIQUITA - Desce daí meu Vespurito!!!




***

[Xiquita, a bacana da Martinica © ARC Edições 2015]
[Texto escrito a quatro mãos por Zuca Sardan e Floriano Martins]
[Imagens: 1. Desenho, de Zuca Sardan; 2. Colagem, de Floriano Martins]
[Aguardem, em um teatro perto do coração selvagem: CIRCO CYCLAME]





domingo, 20 de dezembro de 2015

UM CONTO DE NATAL | Zuca Sardan & Floriano Martins

ZUCA  SARDAN  &  FLORIANO  MARTINS

APRESENTAM

UM CONTO DE NATAL



JORNALEIRO GONTRAN A notícia surpreendeu como se uma pedra caísse sobre uma casa de marimbondos em plena árvore central da Praça dos Três Poderes:

RENA REBELDE AGRIDE PAPAI NOEL

LETRAS MENORES No meio da geleira lapã, Rena Reynoldo estaca o trenó, e achaca Papai Noel, em plena Aurora Boreal.

NOLDO (De revólver) Veado quem?, seu barbaças…

NOEL Calma, Noldinho, foi um lapso vocabular…

NOLDO Velho chovinista pedófilo, passa o saco pra cá!

NOEL Saco?, Que saco, Noldinho?…

NOLDO O saco de presentes, com joias e relógios.

NOEL Ora, Noldinho, este é o saco de roupa suja…

BANG-BANG-BAAANNNGGGG!!! (Cai a Cortina, furada de balas…)

RENA CALDÃO Há muito tememos uma mudança na lei que nos substitua por antas, assim evitando esses imbróglios terminológicos. Este Noel atual era já um decano passado do ponto.

NOLDO Não deixará saudade. O velho decrépito vinha de longe desviando todas as doações…

CORTINA E sempre me furam nesta mesma época do ano, em plena friagem. Brrrr! Devo amar além das medidas este meu ofício, afinal, como dizem, o amor não sabe viver sem dinheiro ou sacrifício.




***

[Um conto de Natal © ARC Edições 2015]
[Texto escrito a quatro mãos por Zuca Sardan e Floriano Martins]
[Imagens: 1. Desenho, de Zuca Sardan; 2. Colagem, de Floriano Martins]
[Aguardem, em um teatro perto do coração selvagem: CIRCO CYCLAME]





sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

PROFECIAS RETROSPECTIVAS | Zuca Sardan & Floriano Martins

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS

APRESENTAM

P R O F E C I A S   R E T R O S P E C T I V A S

[ Enquanto preparamos a estreia do Ciclo Cyclame ]

* * *

ZUCA | Pensemos em um tema que possa eletrizar a plateia. Quiçá uns parágrafos da vida do historiador Nostradamos.

FLORIANO | Nostradamus não é historiador. Ele é profeta.

ZUCA | Os historiadores é que são profetas do passado.

FLORIANO | Como esquecem tudo, precisam adivinhar o que aconteceu.

ZUCA | Do que um Tratado roído por Saturno, mais vale o Narrador do Circo Cyclame.

FLORIANO | Euxímio, abra as cortinas!!!

EUXÍMIO | Cortinas sobem, vemos o Narrador.

NARRADOR | Um historiador cola, retocando dum copista do Sec. XVII, que havia colado retocando de um monge do Sec. XIII, que havia escrito completando as folhas roídas pelos ratos, de um cronista do Sec. V, que havia colado um pouco e inventado umas passagens, pra completar o relato dum outro rolo dum copista que anotou de ouvido uma conversa dum bispo que contou uma lenda sobre um frade que ouviu uma história que assegurou ter-lhe passado um sobrinho tataraneto de São Pistoco, que vivia numa toca de Samarra onde escreveu várias profecias extraordinárias de que fanáticos nestorianos vandalicamente queimaram tod'os escritos.

O FOGO | Enquanto mastigava aquelas páginas que vaticinavam as trapaças da memória pude perceber que tudo era escrito visando garantir o insucesso e que nada afinal se passara do modo como ali estava narrado.

EUXÍMIO | Com mil diabos! Sairei todo chamuscado desse tramalhonzito sulfuroso. Preciso mudar de ofício!

ZUCA | Euxímio, assaz de jeremiadas. Rolha, e puxa o borla da corda, baixa a cortina.

CORTINA | PAAAAAAFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF!


F   I   M


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[Profecias Retrospectivas © ARC Edições 2015]
[Texto escrito a quatro mãos por Zuca Sardan e Floriano Martins]
[Imagens: 1. Desenho-colagem de Zuca Sardan | 2. Foto-colagem de Floriano Martins]

[Aguardem, em um teatro perto do coração selvagem: CIRCO CYCLAME]






domingo, 26 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VII | Parte 33 (Fim)

VII - UMA ÚLTIMA CHAMA?

33

Why cannot the Ear be closed to its own destruction?

William Blake

As vozes confundem-se todas, tormentosas.
Sonhos e pesadelos comparecem mesclados.
O que escutamos sob as raízes extraviadas
pode vir de qualquer um dos seres, terríveis todos.
“Já não importa”, dirão muitos, não se duvide.
A alguns outros aturdirá como uma destruição.
As vozes vêm todas com seus dentes de trevas,
e movem-se vertiginosas em fulgores horrendos.
Possuem línguas efêmeras que pouco se agarram
ao que dizem e quase nada ou nada afirmam.
Aterrorizam com uma cortante sucessão de incertezas.
“Basta atendê-las”, ouvimos por todas as partes.
Uns poucos: “Não querem menos que a imaginação”.
As vozes não conversam entre si ou sorriem jamais.
Sem um mínimo deslize, cuidam de seu encargo.
Não estão exatamente acima de quem as escuta.
Detêm, contudo, um método preciso de tremor e náusea,
a poção com que dissipar toda espessura da imagem,
um coágulo florindo em lugar dos sentidos.
Somem e regressam, as vozes e seus dilemas,
em cada noite de Pequeno Ansioso, frias e ásperas.
Proliferam porque dedilham o vazio, a palavra certa.
Terá mesmo conhecido o prazer aliado ao terror,
a loucura conjugada com a potência poética,
o entendimento do mundo disfarçado em leituras?
E o que fez dos rostos familiares, indescritíveis?
Quantas trilhas não terá refeito, apagado pistas,
até reter em si mesmo toda a essência do mundo?
As vozes comem sustos, agonias, dissipações,
as mesmas linhas em que o menino entrançou
memória e figuras esquivas, de estranhos nomes,
morada alguma, derramadas sobre intocável tablado.
- “Por que então devemos crer na existência aludida?”
- “O pranto talvez requeira sentido, porém não a dor.”
Eis um antigo diálogo, aviltado por alguma impertinência.
O eco se esquece da razão escoada de seu canto.
Somos nós a iluminar ou terrificar a imprópria noite.
De onde vêm as vozes? Do que somos, estridentes
fantasmas, somados ao que supomos e negamos.
Um livro selado, um ardil de vultos, um incêndio
na água caindo sobre um corpo suado, disforme,
uma solidão cheia de graça e que aligeire o fim,
um raro sustenido alcançado.
As vozes, as vozes,
poucas sabem como prolongar a alma, bem poucas.
Entre elas distingo algumas pernas do relâmpago:
um louco assediado pela infâmia e a inveja,
uma fraquejada montaria do inferno, o ouvido
afeito a toda sangrenta ruína, sofridos personagens:
Alfredo Aquilino, Mãe Dolores, Pequeno Ansioso.
Anjos fornicando virgens, eunucos de fita métrica
a buscar a dimensão exata do falo de Deus,
diabos alegóricos, perpétuos, grotescos, sublimes.
Sempre a mesma imagem: diante da morte, o céu.
As vozes em seu obscuro mandato, saliva de trevas,
numinosas ruínas, purulentas semelhanças.
A sós não escutamos senão o praguejar da dúvida.
Um corpo caindo sobre outro corpo e mais outro.
Qualquer mínima angústia requer um lugar,
o dorso de uma ave, uma luz crescente, a sombra
patética de uma imagem, as mãos queimantes.
- “O livro não é nada.” (Não se esperava outra fala?
O que nos faz voltar aqui?) “O menino é a soma
de todas as inquietudes da existência humana.”
Pequeno Ansioso e suas vozes, quase insondáveis.



[ F I M ]










SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 32




VI - INVISÍVEIS TRILHAS



32

Soçobrava pela casa imensa. Vário em tanta angústia. Não havia beleza alguma em todo aquele rastro de ausência, mesmo que sempre soubesse que um dia não teria mais seus parceiros de abismo.
- Compartilhamos um mesmo vazio, Pequeno. Não passo de um desmiolado. Tu não és mais que uma criança. Só agrado a alguém se me desfaço do que mais prezo. Um dia terás que deixar para trás tua maior riqueza.
Andava distraído, por vezes estranhando o caminho, as invisíveis trilhas que havia demarcado em todo o território. Um mapa secreto mesclava uma casa a outra. Logo o cenário se desfaria, seu coração não lhe dava outro sinal.
- Já começaram a morrer meus assuntos. Antes se foram tio Domênico e tio Eudoro. Agora foi a vez do Coronel e de uma avó paterna que morava em outra cidade. Eu a tinha visto uma única vez, quando aqui lhe trouxe a morte de meu irmão. Todos a achavam uma mulher rude e enjoada. Lembro-me da cara com que me olhava, como se odiasse a existência de livros no mundo, e de alguém que os lesse. No dia de sua morte, a casa encheu-se de parentes. Vieram todos falar com o pai, dar-lhe pêsames. Por que não se visitam em nome da alegria?
Pequeno Ansioso acostou ao lado da porta do quarto de Mãe Dolores. Não havia mais nada ali. A porta aberta revelava o vazio refletido em seus olhos. Sabia-a vulnerável, desancada pela boa fé.
- Menino lindo, quero achar tua raiz, chafurdar em teu bosque. Quero armar uma tenda no centro de teu ser. Ficar ali por uns dias, depois sumir, feito um enxame satisfeito.
- Não foi o que fez agora?
Prometeu a si mesmo jamais chorar diante de uma ausência. A vida teria que ser preenchida por todas elas. Sabia que teria muitas, que se multiplicariam como os céus. Nas noites seguintes à morte de Mãe Dolores, acordava assustado e perdido de toda linguagem. Saía da cama em silêncio, a caminho do quarto esvaziado. Deitava ali no frio chão e exumava sua tristeza.
- Não chore. Ela quis que fosse assim.
- Quem fala? Quem está aqui?
O menino tremia por dentro. Não tinham sido poucas as visitações de espíritos em seus dias com Mãe Dolores.
- Te acalma. Sou eu.
Como podia reconhecer? Nas poucas vezes em que vira o irmão ele estava sempre no berço. Tinha quatro anos menos. Não podia andar ou falar. Quem estava ali em seu lugar? Ou já estava indo de vez? O morto acaso recupera os sentidos perdidos em vida?
- Não te dizem o que houve. A mulher se matou. Tomou todos os meus remédios. Não tive como impedi-lo.
Desde aquela noite encostava-se por horas no berço do irmão. Passava-lhe a mão por todo o corpo, como se tateasse incógnita figura, um mito, uma representação qualquer. Era como se escalavrasse sílaba a sílaba toda uma pele à procura de sinais. Dias e dias. Não fez outra coisa desde então. Uma manhã acordou com rumores, ouvindo uma tia quase sussurrar:
- Não deixem Pequeno saber…
- Como esconder de uma criança a morte de seu irmão?
Seguia caminhando pela casa. Um tio levara todos os peixes embora. O quarto escuro perdera o cadeado. Entrou ali uma ou duas vezes, mas não se demorou. Havia um insuportável cheiro de ração de galinhas. Portais confusos. Que invisível trilha enlaçava a rua dos Oitis à rua do Parque? Por uma vez primeira passou a pensar no traçado daquele suspeito caminho. Lembrou-se de uma distância de cinco quadras entre uma casa e outra. A casa da avó ficava diante do Parque das Sombras, de onde recorda algumas raras fotos suas ao lado da mãe. Da outra casa a memória lhe acena com um incêndio havido no posto de gasolina à esquina do Bulevar do Livramento, onde o pai deixava o carro guardado  à noite. Havia algo de subterrâneo que fazia com que não percebesse as idas e vindas de uma a outra morada. Algum dia chegou a duvidar que fossem mesmo duas casas.
- Hoje veio alguém ver a casa.
Ouviu as mulheres falando. Lembrou-se então de Alfredo Aquilino. Toda a sua vida estava sendo povoada por pequenos vazios. Uma intrusão de vazios. Um discurso.
- Um dia não me deixarão mais vir aqui. Os irmãos me julgam inconveniente. A família me quer mesmo louco. Estou escrevendo uma novela sobre todos eles. Dirão tratar-se de uma lorota. A família não passa de um baile de máscaras. Para eles serei sempre o louco, o que garante a sanidade de todos.
E não veio mais o tio, desde aquele engodo das enumerações. Tiraram dali a cadeira de balanço. As palavras estavam fora de alcance. Também a plenitude. Tudo coincidia com a venda de uma casa e o destino incerto da outra. Um anuviado lacre em um trecho da memória.
- A família acaba conseguindo o que bem quer.
O garoto caminhava atônito, esbarrando em alguns móveis, confundindo as salas, dando pela falta de portas, o obscuro margeando a andança, perturbava-se, entrado em ofegantes resmungos, suores, o sono atormentado o ameaçando com visões.
- Mãe!
Um grito seco, mal arrancado da garganta. Senta-se na cama. A noite silenciosa, inapelável em sua escritura. Pequeno Ansioso tateia os novos sendeiros da casa. Procura a biblioteca. Não a encontra em parte alguma. Não há um único livro em todo o lugar.
- Livros que fazem chorar são um tormento indesejável.
Nada se torna remoto se não tomado para si por alguém. Não há dúvida de que os céus sejam múltiplos. Mas temos que torná-los remotos, para que novos céus se entranhem em nossa memória. Sentou-se no chão. Lembrava-se de Mãe Dolores e Alfredo Aquilino. Jamais estiveram em lugar algum. Não houve tempo formulado em seus encontros. Tampouco estiveram juntos em uma mesma conversa. Cada um cuidou de si como um símbolo mergulhado em seu íntimo. Em qualquer clarão a noite surpreende e se dá por inteira. Não havia propriamente uma noite, um personagem, uma cidade, uma novela. Então o que faria de tudo aquilo?
Esteve assim por dias, estancado.
Irresponsavelmente criamos, antes de buscar sentido para a criação. Deus, Homem, Poema. Não importa qual entidade. Não criamos senão ansiedade sobre ansiedade. E erguemos um panteão abarrotado por tudo o que não soubemos ser, um abrigo de nossa inominada condição. Noites frias, filas da sopa, do agasalho, do leito. Não somos o que já disseram, o que pensam de nós. A cada instante repetimos a mesma e mesma e reiterada fala. Nada no homem necessita de história ou sublimação. Esgota-se, rende-se, entrega-se. Jamais consegue entrar em entendimento com a memória. Não há um último fogo a ser tocado, uma última chama a nos devorar. Olhando a paisagem queimando, vemos tudo em fogo, menos o céu. O que falta?






SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 31




VI - INVISÍVEIS TRILHAS


31

- Nada vem tão calmo, ao gosto de quem recebe. Prefiro a ideia de me descobrir sozinho, os limites lançados sobre mim. Não escondo nada de meu dia. Tampouco penso se acaso tal dia exprime algo. Quando alguém se empenha em defender uma razão de ser, simplesmente deixa de me interessar. O que aprendemos não o fazemos como argumento contra o ignorado. Não somos furiosos, alucinados ou equivocados. Estou perdendo a razão possível, misturando-me à voz geral. Serão os primeiros sinais de uma essência esquizoide estoica? Basta recordar Fellini: “quem deseja ser protegido, deve resignar-se a ser protegido até às últimas consequências”. O que esperar da vida senão um pomar de especulações? Febres, fantasias, devaneios, agonias. Notícias, sempre. Retaliações, subornos, fraudes. Notícias de toda forma. Dissipações, maledicências. Notícias as mais inaceitáveis. Paranoia. Notícias da mais intensa felicidade. A memória, o entendimento e a convicção jamais recorridos senão em função da notícia. O homem convertido em aviso de nada. Onde buscou proteção? Devo dar sinal de tudo o que faço, ser reconquistado pela notícia do que fui um dia. O garoto indeciso diante de tantos fogos de artifícios. A ilusão de ser que foi construindo como uma recolha de si. O frio que sentia em seu íntimo, o tremor diante de cada mínima bobagem que lhe marcava a fogo a existência. Tudo isto não podia ser apenas notícia, um frígido sinal do que se passa na alma de alguém. Detestava toda forma de submissão do homem ao enunciado de sua vida.
  

sábado, 25 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 30




VI - INVISÍVEIS TRILHAS


30

A avó assustou-se diante da leitura de um soneto em Relva de estrelas, novo livro de Anselmo Calamares:

Que louca semelhança goza comigo
em tudo o que de mim me desfaço?
Que aborrecida ideia do extermínio
sorvo como cicuta gasta, já sem efeito?

Nada me estreia maior fingimento
ou floresce letargos como fossem cogumelos
distraídos da própria fama e ciência
senão o encalhe de minha alma em si,

desfeita de corpo ou espírito, súbita
irrevogável palavra sem sentido,
abismada com a imagem nenhuma

a contemplar-se em um canto colérico
forjado em trapos de renegada ansiedade
onde se assustam todas as sombras do ser.

Tinha consigo todos os livros do irmão. Gostava de transcrever alguns versos em um caderno, onde recolhia pensamentos de toda ordem, relicário secreto da idealização da vida. A imagem de uma alma encalhada em si era o suficiente para lhe despertar a lembrança de algo lido. Além disto, guardava em uma caixa de sapatos fotografias, conchas, relógios velhos e papéis dobrados com alguns manuscritos. Recolhia de tudo o que não pudera viver. Não havia dúvida a ser tirada. Mesmo assim abriu a caixa e vasculhou entre os guardados até descobrir um mil vezes dobrado e redobrado papel em que a letra trêmula do outro irmão, Alfredo, anunciava: “Nada me anuncia maior fingimento / ou floresce letargos como fossem cogumelos / distraídos da própria fama e ciência / senão o encalhe de minha alma em si…”. Qual o verdadeiro embuste, isto jamais se sabe. Cada mínima coisa perde noção de si, quando mais supõe ganhá-la. A avó sempre foi uma ponte entre a realidade e o desastre existencial da família. Ponte idílica, que não correspondia a uma coisa ou outra. Nossa fortaleza era nossa ilusão. A avó entendia que assim deveriam ser mantidas todas as coisas. O dorso erguido seminu de uma mulher altiva visto de costas não revela nada além da própria altivez. A avó poderia ser essa mulher, o cartaz de um filme, o rigor de uma sensualidade definida a partir do desencanto pelo desmedido. A avó leva consigo acesos os faróis que impedem o engano alucinante, a torta de angústias, o fio de lágrimas escorrendo por uma lousa qualquer. Em seu íntimo sabia que a mudança de uma única palavra era o suficiente para arruinar um poema. E essa pista única denunciava toda a fraude. Contudo, aquela decepção não iria lhe arrancar lágrima alguma.

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 29




VI - INVISÍVEIS TRILHAS


29

- Livros que fazem chorar são um tormento indesejável.
Quem conceberia a ideia de um tormento desejável? A frase sacudira Pequeno Ansioso. “Deus é mãe. Só assim pode haver panteísmo.” Era o que lhe diziam aquelas leituras. Quando todos os seres se arrastam sobre a terra somente a mãe se mantém de pé. Osires, Adad, Shiva, Tesup. Para cada um havia uma mulher que dançava e os conduzia ao diálogo com o mundo. Uma mulher que compreendia o que se passava dentro e fora do reino. Uma mulher que fecundavam e que recolhia os filhos perdidos por toda a terra. Uma mulher que lhes evitava que causassem maior desordem ao mundo. Essa mulher chamava-se Mãe. Horrenda Múltipla Divina Negra Puta Devastadora Prolífera. Mãe de língua pendente. Mãe de braços erguidos. Mãe ferida por toda a carne. Mãe com o corpo recobrindo tudo. Retalhada, conjurada, sublimada. Os números são pedras de jogo. Não expressam substância alguma. A matéria é susceptível a mudar de forma. Desvios e deformações não são propriamente uma escolha. Não importa se está frio ou quente, mas sim quem congela e treme ou arde e sua diante do tempo.
Como pode haver, mãe, um tormento desejável? Como posso ser narrador voluntário e protagonista de uma ação desfiada sem dar substância ao paradoxo? Lia um livro qualquer e chorava ou chorava e lia um livro qualquer?
- Quero sofrer apenas um tanto. Que me diga Deus que outro tanto pode ser salvo em nome desse sofrimento.
Quem diria isto? Os livros não nos tornam condenados a coisa alguma. Tampouco nos salvam de nada. São articulações oratórias, círculos de baba, códices restringidos, árvores, rios, nuvens. Não são senão reflexo do que fazemos de nós. Não podem nos levar a rir ou chorar ou incentivar ao crime ou causar pena ou nos impelir ao suicídio. Os livros são objetos de identificação. Não trazem novidade alguma. Não sugerem uma exótica ramificação de qualquer paradoxo. Não servem melancolia ou frenesi em seu prato de signos. Os livros não têm complexo algum. Os livros despertam interesses, são um caldeamento de sensações latentes. Não há sequer por que escrevê-los. Quando se tornam indispensáveis não é senão sinal de que uma sociedade decai. De uma certa forma os livros se chamam Mãe.